Pode uma rede de pesquisa em escrita e psicanálise ser um lugar de aquilombamento?
Se o quilombo é, acima de tudo, um espaço de fuga, reinvenção e proteção mútua, então essa rede de pesquisa, com sua escrita afetiva é um quilombo de palavras.
A princípio, quando pensamos em aquilombamento urbano, imaginamos territórios físicos, ocupações, centros culturais periféricos: espaços tradicionalmente associados à resistência negra. Mas e se o quilombo não estiver apenas no chão, e sim nas ideias, nas palavras e nos afetos compartilhados? E se ele for feito de encontros onde a escrita, a psicanálise e a escrevivência se entrelaçam como atos políticos de liberdade?
A rede de pesquisa Escrita e Psicanálise do Ato Analítico Escola de Psicanálise, reunida para estudar Freud, Conceição Evaristo e Roland Barthes, custeando coletivamente seu próprio livro, carrega em si os princípios de aquilombamento, ainda que seu terreno seja o simbólico, o textual, o afetivo. Esse pensamento me seguiu durante o último encontro que tivemos, na terça passada, dia 17 de junho, quando estávamos conversando sobre o artigo de Rafael Villari, Psicólogo,Psicanalista, Mestre em Letras (UFSC) e Doutorando em Literatura (UFSC): Relações possíveis e impossíveis entre a psicanálise e a literatura e desde então eu senti que precisava escrever alguma coisa a respeito.
Toda essa ideia de aquilombamento tem também razão de existir na minha cabeça por conta da entrevista que eu fiz com Martha Sales e Sarah Carolinna para a Revista Virgínia, que é uma publicação do Ato Analítico e a matéria pode ser lida aqui.
Continuemos com o raciocínio e vejamos por quê:
A rede de pesquisa Escrita e Psicanálise acabou se tornando para nós um espaço de resistência e autonomia no saber e organização comunitária e de acolhimento:
Acredito que subvertemos uma lógica elitista já que somos pessoas periféricas, pretas, pardas e brancas atravessados pelos estudos sobre raça e gênero, criando um espaço onde o conhecimento é construído de forma colaborativa, sem dependência de financiamentos para a publicação do próprio livro. O fato de termos custeado o nosso livro é um gesto de autonomia econômica e intelectual, ecoando a autogestão dos quilombos históricos.
Os encontros serviram não apenas para estudar teorias, mas também para falarmos de medos, receios e experiências pessoais com a escrita e com sermos autores (até mesmo serviu para nos apropriarmos disto), então houve ali (e há ainda porque a rede de pesquisa segue) uma prática de escuta e partilha que rompeu com a frieza acadêmica. Essa dimensão comunitária, onde o saber nasce da vida e não apenas dos textos, aproxima-se da oralidade quilombola, onde a palavra é viva e coletiva.
Escrevivência como ferramenta de libertação:
Ao adotarmos o conceito ‘Escrevivência’ de Conceição Evaristo, assumimos que a escrita não é apenas técnica, mas ato de sobrevivência e denúncia. Nosso ato analítico?! Como nos quilombos, onde a memória era guardada e transmitida para resistir, a escrevivência registra dores e potências, transformando a escrita em arma contra o apagamento.
Roland Barthes, em *O Prazer do Texto*, fala da escrita como corpo, como desejo. Se os encontros permitiram que cada um trouxesse sua subjetividade para o texto, então o livro resultante é mais que uma obra: é um território simbólico ocupado, onde vozes antes silenciadas ganharam página. Um quilombo, afinal, não precisa ser de barro e palha, ele pode ser de letras e encontros.
Se o quilombo é, acima de tudo, um espaço de fuga, reinvenção e proteção mútua, então essa rede de pesquisa, com sua escrita afetiva, seu financiamento coletivo e sua leitura não hierárquica de saberes é um quilombo urbano de palavras. Um lugar onde a psicanálise foi deselitizada, onde Freud dialogou com Evaristo que dialogou com Barthes, e onde a escrevivência provou que escrever também é um modo de se aquilombar.
Deixo aqui meus profundos agradecimentos aos participantes dela: Laís Gomes que coordena comigo a rede, Ana Júlia Sá, Lays Com Ypisilon, Tuanne Silva, Marcio Vieira, Léo Carvalho e Lucas Carneiro. O meu desejo é que possamos seguir para além do lançamento do nosso livro.
E por falar nisso, o lançamento de Entre Palavras e Inconscientes: Uma escrita de nós será no próximo dia 02 de agosto, aqui no Rio de Janeiro, na Livraria Leitura do Shopping Grande Rio, às 16h. Esperamos vê-los lá.